Sergio H. Monteiro
Visto que o Novo Testamento foi escrito por Judeus,
em contexto judaico, não é surpresa que tradições judaicas tenham exercido um
importante papel na sua tessitura, tanto conceitual quanto prática. E, ao
falarmos das tradições judaicas, não estamos nos referindo particularmente ao
chamado Antigo Testamento ou ao Tanakh judaico, mas a todo o corpo de
sabedoria judaica, expressos e codificados na literatura talmúdica e
midráshica.
O grau de influência e inter-relacionamento entre a
literatura neotestamentária e o corpus da tradição judaica é motivo de
discussão. É o Novo Testamento tão semelhante ao corpus judaico
que com ele se confunde a ponto de ser apenas mais um exemplo da multiplicidade
da mente criativa judaica? Ou é ele de tal maneira dessemelhante que não pode
ser visto exceto como literatura judaica circunstancial e de natureza polêmica?
Por outro lado, no que tange às comunidades cristãs
primitivas é correto se pensar que elas são tão únicas que devam ser vistas
como uma ruptura radical com o seu milieu? (VARNER, FISCHER et al.,
2003) ou devem ser identificadas com seu contexto e cultura até o ponto em que
não possam ser delas diferenciadas, sendo meramente expressões destas Todas
estas questões são alvo de imenso debate acadêmico[3] e este debate está longe de
terminar e atingir um consenso. O estado atual da pesquisa demonstra,
entretanto, que existe um interesse em redescobrir o contexto filosófico,
teológico e judaico do Cristianismo Primitivo (DAVIES e WHITE, 1990; DONALDSON,
2010).
O presente artigo analisa a maneira pela qual o
Novo Testamento - e a comunidade cristã nele representada - interagiu com
as tradições judaicas existentes em seus dias. Para tanto, é preciso de início
definir algumas questões metodológicas. A primeira diz respeito às fontes da
tradição com as quais lidaremos, ou seja, o Talmud e a Midrash. O
Talmud Babilônico contém grande parte das tradições do período Tanaítico
(período dos Tannaim ou sábios do segundo Templo). Em sua forma
final, ele data do século 4 E.C. (ABRAHAMS, 1977), mas suas tradições remontam
até o 3º século A.E.C (VIDAS, 2009) . Além do Talmud babilônico,
existem também o Talmud de Jerusalém, composto aproximadamente no mesmo
período, mas na Palestina, em Jerusalém (NEUSNER, 2008). Por fim, temos ainda
os midrashim, coleções contendo as interpretações exegéticas e
homiléticas da Torah (KATZ e SCHWARTZ, 2002).
Dada a multiplicidade das fontes, e, sobretudo, sua
dispersão no tempo, a primeira pergunta a ser feita é se as tradições judaicas
antedatam, ou são ao menos contemporâneas ao Novo Testamento e a igreja Cristã (REMAUD,
2012). A resposta a esta pergunta não é simples. Em sua forma escrita, estas
tradições datam de meados do século 4 da era comum, chegando, em alguns casos,
até os séculos VIII e IX(VIDAS, 2009). Entretanto, as fontes literárias não são
a origem da tradição, que deve haver existido em forma oral, por muito tempo
antes de haver sido codificada (NEUSNER, 1994). De fato, trechos das tradições
são encontrados circunstancialmente em citações de literatura independente ou
não talmúdica, demonstrando sua antiguidade (REMAUD, 2012).
Ao leitor ocidental não judeu e cristão do século
XXI as multidões de tradições judaicas podem ser consideradas de duas maneiras.
Primeiro, podem ser vistas como meras lendas judaicas, destituídas de qualquer
fundamento e que representam pensamentos místicos ou deslindes homiléticos por
parte dos rabinos. E segundo, podem – de fato são – ser consideradas como
afastamento voluntário ou superposição religiosa sobre o texto da Bíblia
Hebraica. Nenhuma das visões, entretanto, faz justiça à beleza e profundidade
das tradições, quando estas são analisadas em seu contexto e dentro de seu
propósito.
As tradições judaicas são, nos dizeres de Michel
Ramaud (2012), a interpretação judaica do texto da Bíblia Hebraica. Noutras
palavras, elas não surgem do nada, mas se fundamentam no texto da Torah
(CHERRY, 2007). Sem sombra de dúvidas, elas vão além de uma leitura literal e
simples do texto, e, não se pode negar, em muitos lugares representam uma
leitura quase hiperbólica deste (COLLINS, 1998). De qualquer forma, entretanto,
elas existem porque o texto existe. E ele existe não apenas no seu
conteúdo, mas em sua forma. Isto quer dizer que o intérprete judeu da época nas
quais estas tradições surgem, analisa inclusive o formato em que o texto está
escrito, os tipos de letras utilizados, seus desenhos, inclinações e interações
(EVANS, 2004). Para ele, cada um destes elementos possui significado e ajudam a
compreender pontos obscuros do conteúdo do texto.
MODELOS DE CITAÇÃO
É na relação com o texto da Bíblia Hebraica que
encontramos o elemento de tensão ou de aproximação da comunidade cristã
primitiva com as tradições judaicas. De forma geral, veremos que as tradições
mencionadas no Novo Testamento, são aceitas ou não, baseado na proximidade ou
afastamento do texto base da fé judaica, a Bíblia Hebraica.
Existem três modelos básicos de uso das tradições
judaicas, no âmbito da comunidade cristã primitiva. O primeiro é o modelo de
aceitação. Neste, as tradições são vistas de forma positivas e utilizadas de
forma a suportar uma afirmação do Novo Testamento, principalmente no que
respeita a relação de Cristo com cumprimento das expectativas messiânicas. Em outras
palavras, o modelo positivo se subdivide em dois submodelos. No primeiro
submodelo, o uso é indireto e representa apenas a menção positiva de uma
determinada tradição que encontra paralelo nos eventos da Igreja primitiva ou
na vida de Cristo. No segundo, as tradições são utilizadas para dar suporte à
proclamação messiânica do próprio Cristo e acerca de Cristo pelos discípulos e
apóstolos.
O segundo modelo é de rejeição. É o modelo mais
básico da leitura tradicional do Novo Testamento. De fato, mesmo um autor como
James Dunn, com sua aproximação à nova perspectiva paulina, afirma que a
atitude de confronto e rejeição das tradições é o modelo mais comum no
ministério de Cristo. Também aqui, podemos encontrar formas distintas de
relacionamento. Por um lado, encontramos a rejeição explícita e o confronto
direto do Sermão do Monte e da discussão sobre o lavar as mãos, dentre outros.
Por outro, encontramos Jesus falando sobre a não aceitação da hipocrisia farisaica,
afirmando que eles tinham razão no que diziam, mas não faziam o que diziam. Nos
escritos apostólicos, a rejeição às tradições é vista principalmente nas
epístolas paulinas.
Há, por fim, o uso neutro, no qual a tradição é
apenas notada, citada ou mencionada, sem, contudo, haver indicativos positivos
ou negativos. A tradição não é vista como um empecilho à fé cristã, nem é
trazida em seu auxílio, mas é utilizada no contexto narrativo, como uma
explicação de alguma atitude judaica ou de Cristo, ou dos discípulos. Nas
próximas seções, alguns exemplos destes usos serão apresentados e discutidos.
1.1 Uso positivo
Como mencionado, o uso positivo das tradições
judaicas no Novo Testamento se subdivide em dois submodelos. O primeiro é o uso
circunstancial, no qual a citação ocorre no contexto vivencial do Novo
Testamento e da Igreja primitiva. Não há interesse específico por parte do
autor neotestamentário, exceto mencionar a tradição no contexto do
acontecimento da vida de Cristo ou da Igreja. Esta menção, ajuda a explicar o
que foi recentemente mencionado ou a preparar o pano de fundo do que será
narrado em seguida. Não há uma introdução específica da menção, sendo ela
incluída no fluxo narrativo.
Um exemplo do uso circunstancial é o uso que Cristo
faz da expressão ligar ou desligar, no capítulo 18 de Mateus. Jesus não cita a
tradição, mas a utiliza de forma a explicar a autoridade celestial da Igreja.
Ele toma a tradição judaica, segundo a qual, ligar e desligar significavam
permitir e proibir respectivamente, sendo estas prerrogativas do Sinédrio, e as
aplica para a Igreja, no contexto da disciplina eclesiástica.
Outro exemplo é a citação da Ressurreição de Moisés, em
Judas 9. O texto é incluído como recurso teológico e narrativo, no escopo da
humildade. A tradição é citada não para comprovar a ressurreição de Moisés, mas
para exemplificar a humildade até mesmo dos Poderes Superiores, no caso Miguel.
O relato de Judas não se baseia em nenhum texto da Bíblia Hebraica, mas na
tradição que foi preservada de forma fragmentária, no petirat Moshê e no
Asumptio Moses. Nenhuma das fontes, entretanto, registra os
acontecimentos narrados em Judas 9 e podemos apenas supor, com maior ou menor
grau de certeza, que elas o continham. O fato, entretanto, é que havia uma
tradição consolidada que contava com maiores detalhes os eventos circundantes à
morte de Moisés e Judas a utiliza.
Ainda outro exemplo está contido na expressão
“jornada de um sábado” encontrada em Atos 1:12. A menção aqui não é a negativa,
nem exegética, mas circunstancial e serve apenas para estabelecer a distância
percorrida pelos discípulos no retorno do monte das Oliveiras. O evento nem
mesmo se deu em um Sábado, ou pelo menos nada é dito quanto a isto (BARRETT,
2004). A tradição estabeleceu esta distância baseando-se na medição entre o
Tabernáculo no deserto e a última tenda no acampamento (Números 35:5) ou na
distância que Josué estabeleceu deveria ser guardada do povo para a Arca da
Aliança e os Levitas ao cruzarem o Jordão (Js. 3:4) (Cf. T. B. ‘Erubin
4:3) (NICHOL, 1978).
O uso circunstancial não é comum na literatura
Paulina, uma vez que este corpo literário é composto de poucas narrativas. Há,
entretanto, exemplos como o de 2. Timóteo 3:8, no qual ele nomeia os dois
sacerdotes egípcios que resistiram a Moisés. Êxodo 7:8ss não apresenta nenhum
nome para os sacerdotes, e Paulo seguiu aqui a tradição judaica. A primeira
menção que conhecemos dos nomes de Jannes está no Documento de Damasco linhas
17-19 (DAVIES, 1982), no qual se diz que eles foram levantados por Belial para
se opor a Moisés e Arão, que haviam sido levantados pelo Príncipe das Luzes.
Jambres não é mencionado, mas chamado apenas de “seu irmão”. O Targum Pseudo-Jonathan
de Êxodo 7:11 traz estes nomes, que se tornaram comuns na tradição judaica (KAUFMAN,
2005). De acordo com algumas versões da tradição, eles eram os filhos de
Balaão, que haviam tomado a capital da Etiópia e que resistiram Moisés ali,
quando ele fugiu do Egito e se uniu ao exército Etíope (T. B. Baba
Bathra 55a, cf. Moses (1906)).
A segunda maneira pela qual as tradições judaicas
são utilizadas positivamente na Igreja Cristã Primitiva e no Novo Testamento é
como um dispositivo exegético. Neste modelo de uso, os elementos da tradição
são utilizados para dar validade a um aspecto interpretativo do Novo Testamento
ou para demonstrar como Cristo cumpre um item específico das profecias.
Um exemplo deste uso está no tempo que Jesus
deveria passar na sepultura. Os evangelhos afirmam, vez após vez, que O Senhor
ressuscitaria ao “terceiro dia” (Mat. 16:21), após “três dias” (João 2:19),
segundo as palavras dos profetas (Lucas 18:31). Ora, não há um texto bíblico
específico que afirme que o Messias deveria ressuscitar ao final de três dias.
Mas há indicativos na tradição judaica que podem ser identificados como a fonte
desta expectativa, da qual Jesus se apropria.
O Midrash Rabbah de Gênesis 56 contém uma
referência extensa a um período de três dias:
“No terceiro dia”, etc. “Ao fim de dois dias nos fará reviver; no terceiro dia nos reerguerá e viveremos em sua presença” (Os. 6,2). 0 terceiro dia das tribos: “No terceiro dia José lhes disse” (Gn 42,18); no terceiro dia do dom da Torá: Ao amanhecer do terceiro dia...” (Ex 19,16); no terceiro dia dos espiões: “Escondei-vos lá durante três dias” (Js 2,16); no terceiro dia de Jonas: “Jonas permaneceu nas entranhas do peixe três dias e três noites” (Jn 2,1); o terceiro dia daqueles que voltam do exílio: “e ali acampamos três dias” (Esd 8,15); no terceiro dia da ressurreição dos mortos: “Ao fim de dois dias nos fará reviver; no terceiro dia nos reerguerá e viveremos em sua presença”(Os 6,2); o terceiro dia de Ester: “Ao fim de três dias, Ester pôs suas roupas reais” (Est 5,1) e em razão de quê? Nossos mestres dizem: em razão do terceiro dia da outorga da Torá; e Rabi Levi disse: em virtude do terceiro dia do nosso pai Abraão: “O terceiro dia”...
O texto acima mostra que existia uma tradição muito
bem definida de eventos especiais acontecendo ao final de três dias ou ao
terceiro dia. O midrash cita inclusive a expectativa da
ressurreição e erguimento do povo de Israel ao final deste período, porque da
leitura de Oséias 6:2, os rabinos obtiveram a certeza da ressurreição. É bem
verdade que o texto do Midrash não cita especificamente o Messias. Isto não é
necessário, entretanto. O fato é que a tradição estabeleceu firmemente que o
período de “aflição do justo” não é maior do que três dias (bereshit rabbah,
96), e que, ao terceiro dia, a ressurreição dos mortos era esperada. Jesus
utiliza-Se desta tradição e a valida ao apresentar nos Evangelhos que Sua
Ressurreição deveria acontecer no terceiro dia, segundo os “profetas”. Ele não
se referia a qualquer profecia em particular, mas a este conjunto de profecias
reunidas pela tradição judaica, através da leitura dos profetas, iniciando com
a história do Sacrifício de Isaac, contada em Gênesis 22.
Paulo retoma esta mesma tradição, em sua primeira
carta aos Coríntios, capítulo 15. Ele argumenta que Cristo ressuscitou ao
terceiro dia, “segundo as Escrituras”. Podemos tomar este verso como uma
referência à história de Cristo, narrada nos Evangelhos ou como uma referência
às profecias que falavam da ressurreição do Messias ao terceiro dia.
Dificilmente, dada a data da primeira carta aos Coríntios, poderia ser
uma referência aos evangelhos, que teriam sido escritos no mesmo período ou
posteriormente. Além disto, a referência no verso 3, às Escrituras não deve ser
vista com uma referência aos evangelhos, mas às profecias da morte do Messias.
Em sendo assim, Paulo parece ler Oséias 6:2 através da lente da tradição
encontrada no midrash.
Outro exemplo de uso positivo da tradição em Paulo
pode ser encontrado em 1. Tessalonicenses 2:16. A menção à Ira divina é uma
citação verbatim ad litteram do Testamento de Levi 6:11. Lamp
(2003) argumentou brilhantemente que Paulo aqui se valeu da tradição encontrada
no Testamento de Levi, como um marco teológico e dispositivo exegético através
do qual ele enxergava as relações entre os perseguidos e perseguidores.
1.2 Uso negativo
O segundo uso da tradição nos Novo Testamento é o
negativo, de contradição ou tensão. De fato, este é o uso mais comumente
encontrado nos escritos neotestamentários. As tradições judaicas são citadas
diretamente e postas em direto contraste com os ensinos da comunidade cristã ou
do próprio Jesus.
Talvez o exemplo mais emblemático deste uso esteja
no Sermão da Montanha, na versão Mateana. Ali, os ditos rabínicos e a
interpretação halakikha da lei são confrontados de forma direta e postos
sob uma luz negativa. É verdade que, em nossas traduções, esta polêmica
desaparece e Cristo é visto como que pondo de lado a própria Torah, superpondo
Sua própria Lei ao que havia sido dito aos antigos judeus, ao sopé do Sinai.
Esta visão, entretanto, precisa ser posta de lado,
uma vez que cria problemas indissolúveis: como é possível que Cristo no
capítulo 5:17 de Mateus diga que não veio abolir a Lei, e em seguida declare
seus princípios inválidos?
Uma resposta para esta contradição aparente esta
compreensão de que Jesus estava lidando no sermão do monte não apenas com a
Bíblia Hebraica, mas também e principalmente com elementos da tradição judaica.
É a partir do verso 21 e até o verso 48 do capítulo
5 de Mateus, que Jesus apresenta seu discurso de contrastes com a tradição dos
anciãos. O conteúdo do discurso é marcado pela contraposição da posição do ἀρχαίοις com sua própria posição sobre
os Mandamentos. Jesus estabelece o contraste ao utilizar já a forma rabínica de
se referir à transmissão da tradição. Ele inicia cinco de suas seis antíteses
(vv. 21, 27, 33, 38, 43), com o termo ἠκούσατε, “Ouvistes”. A única
exceção é a quarta antítese, no verso 31, na qual o verboἠκούσατε deve ser subentendido
(HAGNER, 2002). Este termo é uma clara menção à forma שמעו
encontrada na literatura rabínica como uma referência à tradição oral (Sanh.
11:2; T.p. Terum. 10, 47) (STRACK e BILLERBECK, 1922).
Estabelecida a procedência rabínica da proposição,
Cristo apresenta Sua própria intepretação da Lei, através da expressão ἐγὼ δὲ λέγω. O próprio uso desta forma,
apresenta um ponto de contraste, uma vez que o costume rabínico é sempre se
referir a uma autoridade além da sua, para substanciar a opinião emitida. É o
famoso dito “Rabi X disse em nome de Rabi Y” (Exemplos em Strack e Billerbeck
(1922)). Por contraste, Cristo não apresenta outra autoridade que não a Sua
própria como fonte de sua interpretação.
Outro exemplo dos Evangelhos é a discussão quanto
ao lavar as mãos antes de comer, em Marcos 7:1. Os escribas e fariseus acusaram
os discípulos de quebrarem a tradição dos anciãos ao comerem sem lavar as mãos.
De fato, o Talmud Yerushalaim, Tr. Shabbat 3.4, afirma que:
Hillel e Shammai decretaram על טהרות ידים “sobre a purificação das mãos””; R. José bem R. Bom, em nome de R. Levi, diz “assim era a tradição antes, mas eles a esqueceram. Estes dois se levantaram e concordarm com as mentes dos anteriores.
Jesus chama esta tradição de tradição de homens,
citando Isaías 29:13, e se coloca nitidamente contra ela. Ele não tenta
justificar Seus discípulos, mas afirma que a tradição é inválida.
Em Gálatas 1:14, Paulo fala de si mesmo como sendo
extremamente zeloso da “tradição de meus pais”, mas que ao passar para a Graça,
não consultou “carne nem sangue” (v. 15). Noutras palavras, ele, após a
experiência no caminho de Damasco, passa a entender que as tradições dos pais
não eram condizentes com a sua nova vida. Ele considera estas tradições, ou
formas delas, perigosas para as comunidades que ele havia estabelecido e as
adverte contra os mestres falsos que se apresentavam ensinando-as, tanto em
Gálatas, quando em Colossenses e Efésios. A leitura tradicional destas cartas
estabelece uma discussão de Paulo com a Torah, sem perceber que sua
insatisfação não estava nos mandamentos, leis ou ordenanças da Lei (entendida
aqui de forma integral, tanto moral quanto cerimonial), mas com as tradições em
torno da Lei. E em que consistiam estas tradições? Horbury (2010) demonstrou
que eram os ensinos Farisáicos, chamados de paradosis, que consistiam
das interpretações que Paulo havia aprendido enquanto era ele mesmo um Fariseu.
1.3 Uso Neutro
O último uso da tradição judaica no Novo Testamento
é aquele que não a utiliza nem de forma positiva e nem de maneira polêmica, mas
apenas a cita no contexto da própria tradição. Ela não faz parte da cosmovisão
cristã primitiva, mas não interfere com seus ensinos, sua compreensão da Bíblia
Hebraica ou do Messias. Ela não direciona sua interpretação do Tanakh, porque
não é interpretativa.
De certa forma, ela está relacionada com o uso
circunstancial, pois está inserida em um contexto narrativo. Contrário ao uso
circunstancial, o uso neutro, entretanto é apenas uma informação acessória, que
não direciona o fluxo narrativo, nem o interrompe.
Um exemplo claro é encontrado nos Evangelhos, em
João 5:2, na narrativa da cura do coxo no tanque de Betesda. A menção à
tradição do anjo que movia a água, não direciona a narrativa, nem causa o
milagre. Não há tampouco, uma discussão teológica sobre o movimento das águas.
Apenas se diz que criam que aquilo era verdade.
Conclusão
Examinamos de forma resumida as três principais
formas como o Novo Testamento, mormente Jesus e Paulo interagiram com a
tradição judaica vigente em seus dias e percebemos duas importantes
características:
1) Eles interagiram
com a tradição, respeitando-a, rejeitando-a e transformando-a. De forma alguma,
eles entenderam estas tradições como erradas em si mesmas, sem demonstrar as
bases pelas quais o faziam.
2) O segundo aspecto
é exatamente o fator utilizado para determinar se uma tradição era usável ou
não: A Bíblia Hebraica. As tradições não podiam “invalidar” as leis e mandamentos
que haviam sido dados no Sinai. Em Paulo, seu encontro com Cristo e a
compreensão de Jesus como não apenas o Messias judaic, mas como Deus em carne,
era o fator que determinava a aceitação ou rejeição de uma determinada
tradição.
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