Matheus Antônio de
Oliveira
Uma correta compreensão de Deus e sua obra é
imprescindível para a vida cristã. Por esta razão, o presente artigo se
propõe a investigar os antecedentes filosóficos do conceito do “Logos”, a
construção deste conceito em Fílon de Alexandria e seu uso no capítulo um do
Evangelho de João. O objetivo final é proporcionar uma visão biblicamente
correta sobre a divindade de Cristo.
INTRODUÇÃO
A Teologia cristã, ao longo da história, foi
fortemente influenciada pela filosofia helenística. Tal amalgamação gerou
conceitos totalmente contrários às escrituras, principalmente quanto à doutrina
de Deus. Também corroborou para o desenvolvimento de uma leitura mais alegórica
do texto bíblico e uma compreensão totalmente distante das intenções originais
dos autores canônicos.
Neste presente artigo, estudaremos o conceito Logos
(do grego λογος) dentro da filosofia
helenística; sua influência no conceito teológico acerca da divindade; e uma análise
do uso da palavra Logos no Capítulo um, verso um do evangelho de João. Quanto a
este último item, buscaremos responder as seguintes questões: o evangelista
tinha como pano de fundo o conceito neoplatônico de Logos ou simplesmente se
ateve ao contexto judaico-cristão? O conceito de divindade de João,
principalmente no que diz respeito à pessoa de Cristo, era similar ao conceito
dos pais apostólicos ou era totalmente antagônico ao destes últimos?
ANTECEDENTES EM HERÁCLITO E NA FILOSOFIA ESTOICA
A palavra Logos adquiriu diversos significados ao
longo da história da filosofia. Primariamente significa “razão”, “palavra”.
Como razão, o Logos é uma ponte entre o objeto real e a ideia que temos deste
objeto. Como Palavra, em Platão e Aristóteles especialmente, “o logos não é uma
mera emissão sonora, mas um som significativo, ou seja, que se refere a algo de
real e, portanto, determinado” (MORAES, 2017, p. 61).
Heráclito de Éfeso, que viveu no sexto século antes
de Cristo, foi um dos primeiros a utilizar o termo Logos. Ele defendia que
todas as coisas seguem um determinado fluxo e nada permanece da mesma maneira.
Mas apesar das constantes modificações, pode ser identificado uma ordem e um
padrão comum em meio a todas as constantes transformações do universo. Este
padrão seria o Logos, aquilo que permeia o mundo e faz com que este se torne um
cosmos ordenado (LADD, 2007, p. 356). “O Logos é a razão universal que domina o
mundo e torna possível uma ordem, uma justiça e um destino” (MORA, 1994,
p.1795).
Alguns séculos mais tarde, a ideia de Heráclito foi
adotada e reinterpretada pelo estoicismo. Esta escola filosófica surgiu em um
período de dominação macedônica, momento em que as cidades gregas perderam sua
independência. Junto com a autonomia das cidades, sucumbiu à antiga religião
politeísta, dando lugar a uma nova visão teísta:
Para o estoico, o universo é todo ele “divino”, emanado de um “Sopro” ou de um “Fogo” (Deus – Razão – Vida). Nós não passamos de uma centelha (faísca). A matéria é o estado inferior desse Sopro. Há, porém uma unidade no todo e tudo se adapta ao conjunto em função de uma Ordem Geral (AGOSTINI, 1997, p. 50-51).
O Logos seria este “Sopro” ou “Fogo” de onde emana
toda a Natureza e a quem tudo se submete. “É um poder divino de caráter
mundial, contendo dentro de si mesmo as condições e os processos de todas as
coisas, e é chamado Logos ou Deus” (LEDD, 2007, p.357).
Segundo Cullmann (2008, p. 330): “(...) ao falar de
Logos, e mesmo que se postule acerca dele que ‘era desde o princípio’, esta
alma impessoal e panteísta do mundo, do que fala o estoicismo, é coisa muito
distinta do Logos Joanino”. Portanto, tanto em Heráclito quanto nos estoicos, o
Logos era um princípio imaterial e universal, e não propriamente uma
personificação ou ser existente.
A DOUTRINA DO LOGOS EM FÍLON DE ALEXANDRIA E NOS
PAIS APOLOGISTAS
Fílon de Alexandria (20 a.C – 42 d.C), foi um judeu
que se propôs a unir a filosofia helenística com a religião judaica. Por esta
razão, apesar de aceitar a inspiração divina do Antigo Testamento, desenvolveu
uma interpretação alegórica que lhe permitiria “desvendar” conceitos
filosóficos dentro das escrituras.
Fortemente influenciado pela filosofia platônica,
Filo concebeu um Deus totalmente transcendente e separado do mundo e que só
poderia se comunicar com o mundo material através do Logos. “O Logos age como
mediador, assumindo tarefas pelas quais, em última instância, o responsável é o
Todo poderoso, mas que poderiam dar a impressão de toldar sua transcendente
santidade (STEAD, 1999, p.141) ”. Aqui, o logos filoniano assume uma nova
dimensão daquela dada pelos estoicos. De sua natureza divina e incorpórea, o
Logos adquire a imanência, ou seja, uma dimensão que permite uma ligação entre
as criaturas e o Criador. (MORAES, 2017, p.333). Apesar de alguns afirmarem que
esta ideia seria o logos spermatikos dos estoicos, em Fílon o logos é distinto
de Deus e do mundo.
Apesar de alguns discutirem a pessoalidade ou
impessoalidade do Logos filoniano (CULLMANN, 2018, p.331), o logos em Fílon é
algo imaterial e tornou-se encarnado no corpo do mundo. Ele é o instrumento que
garante a divina existência do mundo e sua preservação.
As ideias contidas em Filo influenciaram o
pensamento cristão quanto à trindade e a divindade de Cristo. Os pais
apologistas adotaram a concepção platônico-aristotélica de Deus, ao mesmo tempo
em que buscavam descrever uma divindade pessoal, como contido nas escrituras.
Todavia, o conceito de um Deus pessoal era inconcebível com os conceitos
filosóficos da impassibilidade e imutabilidade divinas. Para resolver este
problema, Justino e os apologistas passaram a defender que essas
características se aplicavam ao Pai enquanto que o Filho se tornava um
mediador, ou seja, o Logos divino atuando no mundo.
Nos escritos de Justino, e mais tarde
Tertuliano, o Filho “não é co-eterno com Deus; ademais, ele existe para
fornecer um mediador entre Deus e o cosmo na criação e revelação (...)”
(WALKER, 2006, p.103). Para Justino (Primeira Apologia, 5; Segunda apologia, 10
[ANF 1:164,191] ), citado por Canale (2011, p.160): “o Logos e não o Pai
encarnou-se em Jesus”. Este assunto suscitou muitas discussões e o surgimento
de alguns movimentos contrários como o monarquianismo (do grego monarchia,
toscamente), que defendia que Jesus foi meramente um homem comum, que recebeu o
poder divino no batismo e foi “adotado” a esfera transcendental na
ressurreição.
Outra forma de monarquianismo foi desenvolvida por
Sabélio, que entendia Pai, Filho e Espírito Santo como realidades distintas de
uma única divindade. Suas ideias foram rebatidas por Hipólito de Roma, que
defendia que o Logos é distinto do Pai e foi criado para a realização de Sua vontade.
O LOGOS JOANINO: UMA BREVE ANÁLISE DE JOÃO 1:1
Logo no prólogo que introduz o quarto evangelho,
nos deparamos com a seguinte sentença: “No princípio era o Verbo (Logos), e o
Verbo (Logos) estava com Deus, e o Verbo (Logos) era Deus ” (BÍBLIA, João 1:1).
O evangelista usa três vezes o termo destacado nos parênteses. Mas qual é o
significado da palavra Logos neste trecho? Qual é a visão de João acerca da
divindade de Cristo? Seria a mesma visão da filosofia helenística?
Em primeiro lugar, a palavra Logos era um conceito
amplamente utilizado no contexto filosófico grego. Todavia o pano de fundo do
apóstolo era a mentalidade hebraica e o Velho Testamento. Mesmo assim, é certo
que o uso do termo foi uma ponte para que muitas pessoas educadas na filosofia
grega, como Justino Mártir, fossem conduzidas ao cristianismo (BRUCE, 2006,
p.34).
Em segundo lugar, as ideias que João evoca em seu
evangelho quanto à preexistência pessoal e a encarnação do Logos, são
totalmente incompatíveis com a ideia filosófica do Logos de Filo de Alexandria.
O Logos de Filo “não tem personalidade distinta, e não se tornou encarnado
(CARSON, 2007, p. 115)”.
Na septuaginta, Logos é a tradução da palavra
hebraica dâbar. A Palavra de Deus acompanha seus atos poderosos como a criação
(Gn 1:3; Sl 33:6) e a libertação (Sl 107:20). Ao se comunicar com os profetas é
dito que “a palavra do Senhor veio...” (Is 38:4). Assim como a “Sabedoria ” de
Deus, a Palavra é personificada, todavia, não é personalizada e nem
encarnada.
Portanto, o Logos de João transcende em seu
conceito tanto o Logos filosófico quanto o conceito hebraico. O apóstolo, mesmo
que usando um termo comum as duas realidades culturais distintas, queria
transmitir uma ideia totalmente inovadora acerca da divindade de Cristo.
Para compreendermos seu conceito de
divindade, é necessária uma rápida análise da passagem estudada. Claramente no
primeiro capítulo o Verbo é identificado como Jesus. O verso dezoito esclarece
o possível uso do termo para Jesus: Ele veio revelar ao Pai. Assim, o termo
possivelmente identifica Cristo como a vontade do Pai encarnada, com objetivo
de salvar a todos os homens.
Diz o verso que a Palavra estava com Deus e era
Deus. A preposição “com” é traduzida do grego pros. Na maioria dos casos,
esta preposição se refere à proximidade entre duas pessoas, geralmente num
relacionamento muito íntimo (CARSON, 2007, p.117). Quanto a Palavra era Deus,
mesmo que o théos aqui não tem um artigo, um substantivo predicado pode
perfeitamente ser específico (ver João 8:39; 17:17).
CONCLUSÃO
O Logos joanino é muito mais que um mediador
entre o Deus inamovível e o mundo dos mortais. João 1:1 mostra que o logos
estava desde o princípio, ou seja, é preexistente. Essa verdade ecoa em outras
passagens como João 8:58, onde o próprio Cristo se iguala ao “EU SOU” do
antigo testamento. Além disso, o Logos estava com Deus e era Deus, ou seja,
Jesus é uma pessoa distinta do Pai e possui os mesmos atributos da divindade.
Essa verdade contradiz o que os pais apologistas afirmaram, quanto ao
subordinacionismo de Cristo em relação ao Pai.
Por fim, temos a declaração em João 1:14 de que “o
logos se fez carne”, afirmação que refuta todo o dualismo filosófico, inclusive
o de Filo de Alexandria, que idealizam uma divindade totalmente separada do
mundo e da realidade.
REFERÊNCIAS
AGOSTINI, Nilo. Teologia Moral: o que você precisa
viver e saber. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
BÍBLIA. PORTUGUÊS. Bíblia Sagrada. Traduzida por
João Ferreira de Almeida. Ed. Ver, Atual. Brasília: Sociedade bíblica do
Brasil, 1969.
BRUCE, F.F. João: introdução e comentário. São
Paulo: Vida Nova, 2006.
CANALE, Fernando L. Doutrina de Deus. In: DEDEREN,
Raoul. Tratado de teologia adventista do sétimo dia. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2015. Cap 4, p. 120-179.
CARSON, D.A. O comentário de João. São Paulo: Shedd
Publicações, 2007.
Comentário Bíblico Adventista do Sétimo Dia: Mateus
a João. Edição de Vanderlei Dorneles; Tradução de Rosangela Lira et al; Revisão
de Luciana Gruber. Tatuí, SP: Casa Publicadora Brasileira, 2013. v.5.
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo testamento.
São Paulo: Hagnos, 2008.
LADD, George E. Teologia do Novo Testamento. São
Paulo: Hagnos, 2003.
LOGOS. In: MORA, J.F. Dicionário de Filosofia: Tomo
III. Barcelona, Es: Editorial Ariel, 1994.
MORAES, Dax. O logos em Filo de Alexandria: a
fronteira entre o pensamento grego e o pensamento cristão nas origens da
teologia bíblica. Natal, RN: EDUFRN, 2017.
STEAD, Cristopher. A Filosofia na Antiguidade
Cristã. São Paulo: Paulus, 1999.
WALKER, W. História da Igreja Cristã. São Paulo:
ASTE, 2006.