A autoria do livro de Rute é incerta. Segundo o Talmud o livro seria da autoria de Samuel (Baba Bathra 14b), mas é pouco provável; parece que Davi era bem conhecido na época em que o livro foi escrito e Samuel já estaria morto. Uma data possível para o livro seria o século 10 a.C., visto que o livro não cita Salomão. (CUNDALL et al., 1968, pp. 218 – 219; GLEASON, 1974, p. 204).[1]
A história
narrada no livro de Rute se passa no período dos juízes. O período dos juízes
foi marcado por diversas apostasias do povo de YHWH. Quando Josué morreu o povo
ficou sem um líder, e por diversas vezes seguiu as práticas pagãs dos povos
vizinhos (Jz 2. 11, 17, 19; 3. 6; 4. 1 – 2; 6. 1; 8. 33; 10. 6; 13. 1; 17. 6,
21, 25). Toda vez que Israel se corrompia, YHWH mandava nações pagãs para
subjugá-los, como havia sido previsto no contrato de aliança (Dt 28; Lv 26).
Porém, assim como Israel caía em pecado e era subjugado, também se arrependia,
e quando isso acontecia, eles clamavam a YHWH por socorro; Ele, então,
levantava juízes para libertar Seu povo e lhes dar descanso (Jz 2. 16, 18; 3.
15; 4. 3; 6. 7; 10. 1). Os juízes não eram como os juízes dos dias atuais;
antes, eram líderes militares guiados pelo Espírito de YHWH para libertar o
povo (LASOR et al., 2002, p. 166).
No período
dos juízes Elimeleque e sua família migram de Belém para as terras de Moabe por
conta de uma fome em sua terra natal. Os dois filhos do casal, Malom e Quiliom,
se casam com mulheres Moabitas, Rute e Orfa. Por motivos não mencionados no
livro Elimeleque e os dois filhos morrem em Moabe e Noemi, sua esposa, ao saber
que a fome havia cessado em Belém decide voltar. Ela insiste para que suas duas
noras retornem para a casa de seus pais; Orfa volta e Rute decide acompanhar sua
sogra para sua terra natal. Estabelecidas em Belém elas precisam de comida e
Rute vai até as plantações de Boaz, um parente de Noemi, para respingar cevada
e trigo. Boaz como parente próximo é lembrado por meio de uma estratégia
engenhosa de que ele deve resgatar a terra e a jovem Rute. O resgate acontece e
os dois se casam dando um neto para Noemi.
2
ESTRUTURA LITERÁRIA
Em sua
teologia Bruce Waltke (2015, pp. 949 – 950) propõe uma estrutura de quiasmo para
o livro que será apresentada abaixo.
A Noemi: idosa demais para ter
filhos (1.1-22)
B
Apresentação de um possível resgatador (2.1)
C Rute e Noemi fazem um plano (2.2)
D Rute e o campo de Boaz (2.3)
E Boaz vem de Belém (2.4)
F Boaz indaga: “Quem é esta moça?”
(2.5-7)
G
Rute se torna parte do clã de Boaz (2.8-18)
H Noemi abençoa Boaz (2.19)
I Boaz, um resgatador em potencial
(2.20)
J
Rute se junta aos trabalhadores de Boaz (2.21-23)
X O plano feito por Noemi e Rute
(3.1-8)
J’
Rute desafia Boaz a agir como resgatador (3.9)
I’
Rute se identifica como serva de Boaz (3.9)
H’ Boaz abençoa Rute (3.10)
G’ Boaz promete casar-se com Rute
(3.11-15)
F’
Noemi pergunta; “Quem és tu?” (hebr.) (3.16-18)
E’ Boaz vai a Belém (4.1)
D’ Rute e o campo (4.2-12)
C’ O plano de Rute e Noemi se realiza:
casamento (4.13)
B’
Aceitação do resgatador (4.14-16)
A’ Noemi tem um filho! (4.17)
Epílogo;
que filho — Avô do rei Davi! (4.19-22)
A
estrutura quiástica do livro está em harmonia com sua estrutura narrativa. O
enredo se desenvolve ao longo de cinco atos:
1. Rute
emigra de Moabe para Belém (1.1-22)
2. Rute
colhe no campo de Boaz (2.1-23)
3. Rute
propõe casamento a Boaz (3.1-18)
4. Boaz
resgata Rute (4.1-12)
5. Rute dá
à luz Obede/Davi (4.13-17)
O enredo é
dominado pelos diálogos dos personagens. Lasor (2002, p. 572) destaca que “os
vários diálogos da história, não a narrativa do autor apresenta os eventos”. No
presente artigo apresentaremos a ideia de que a teologia do livro está presente
nos diálogos dos personagens.[2]
3
TEMAS TEOLÓGICOS
3.
1 YHWH é Soberano e Mantenedor
Os diálogos
dos personagens no livro de Rute estão repletos de declarações acerca da
Soberania de YHWH. No prólogo do livro o narrador informa que após a morte do
marido e de seus dois filhos Noemi decide voltar para Belém com suas duas noras
pois soube que YHWH estava provendo alimento para seu povo (Rt 1. 6). Entre a
saída de Moabe e a chegada a Belém há declarações significativas sobre YHWH nos
diálogos.
Na
primeira após a saída de Moabe Noemi deseja as duas noras que YHWH as trate com
bondade, pois, foi desta forma que elas trataram sua família (Rt 1. 8 – 9).
Neste diálogo ela convida suas noras a voltarem para suas famílias e Noemi
destaca que a “mão de YHWH está sobre ela” (Rt 1. 13). Tal declaração parece
indicar que ela entendia que as adversidades vividas em Moabe eram frutos da
mão de YHWH.
As duas
noras não queriam voltar, mas com a insistência de Noemi Orfa resolve voltar e
Rute decide ficar. Neste momento Rute faz uma das declarações mais conhecidas
de seu livro: “teu povo é o meu povo e teu Deus é o meu Deus” (Rt 1. 16). Ela
complementa dizendo que ficará com Noemi e que se YHWH quiser lhes separar
deverá castigá-la pois só a morte irá lhes separar (Rt 1. 17). A declaração de
Rute é importante para o presente estudo, pois, após ela reconhecer o Deus de
Israel como seu Deus ela reconhece que ele pode mandar uma calamidade para
separa – las.
Na chegada
de Noemi e Rute a Belém; Noemi faz declarações significativas sobre o Deus de
Israel. Noemi atribui todas as calamidades que acometeram em Moabe a mão de
YHWH (Rt 1. 19 – 22). Tais declarações exibem a realidade de que elas
acreditavam que YHWH estava no controle de suas vidas.
Noemi
concluiu que Shadday havia e voltado contra ela. É significativo o uso
da palavra Shadday nestas circunstâncias. Esse é um dos teônimos do Deus
de Israel na Bíblia Hebraica (BH) e aparece quarenta e oito vezes. As
ocorrências desse vocábulo nos livros Bíblicos anteriores a juízes estão geralmente
relacionadas a aliança, a benção em relação a família e a descendência daquele
que teme a Shadday (Gn 17. 1; 28. 3; 35. 11; 43. 14; 48. 3; 48. 3; 49.
25; Êx 6. 3; Nm 24. 4, 16) (HAMILTON, 1998, p. 1530; RÖMER, 2016, p. 84;
METTINGER, 2015, pp. 108 – 113; BUSH, 2002, p. 92). Robert L. Hubbard (2003, p.
176) destaca:
E mais, o
nome era apropriado ao contexto aqui, visto que a BH associava Shadday com o
governo cósmico de Deus (Nm 24.4,16; Sl 68.15; Jó 40.2; cf. 34.12,13). Por
natureza, grande e misterioso (Jó 11.7), Shadday dispensa bênçãos, promete
grandes destinos (Gn 17.1; 28.3; 35.11; 43.14) e distribui destinos aos maus e
aos retos (Jó 27.14; 31.2). Como regente cósmico, ele também supervisiona a
manutenção da justiça (Jó 8.3; 24.1; 27.2), distribuindo terríveis castigos (Jó
6.4; 23.16; 27.14–23; cf. o terror de sua voz, Ez 1.24; 10.5). As pessoas
apelam para ele por vindicação legal e socorro (Jó 8.5; 13.3; 31.35). (Cf.
também seu lado terno, Sl 91.1.) Em suma, Noemi referiu-se a Shadday
corretamente neste contexto. Sua sorte não poderia ter vindo de outra fonte –
como também a futura inversão da sorte dela.
A viúva angustiada acreditava que Shadday que abençoa a família e a descendência havia se
posto contra ela. Essa realidade era comum no mundo antigo onde as pessoas
acreditavam que tanto as maldições quanto as bençãos eram obras da divindade
(WALTON et al., 2018, p. 361). YHWH
sendo criador de tudo e mantenedor é visto como Aquele que pesou a mão contra
ela. Nesta época ainda não havia uma teologia desenvolvida sobre as forças
malignas que agem sobre a terra. O livro de Jó contribui significativamente para
a ideia de que existem poderes além de YHWH agindo sobre a terra.
Estabelecidas
em Belém elas precisam de alimentos e Rute decide respingar cevada e trigo (Rt
2. 2, 23). Neste contexto YHWH novamente é apresentado como Soberano. É necessário
destacar que a primeira fala de Boaz no livro é: “Que YHWH esteja convosco!” e
a dos servos dele é: “Que YHWH te abençoe” (Rt 2. 4). No diálogo entre Boaz e
Rute ele deseja que YHWH retribua a ela tudo que fez por sua sogra e destaca
que ao ir para Belém ela buscou refúgio em YHWH (Rt 2. 12). As falas de Boaz
indicam que ele é um homem temente ao Deus de Israel e que crê que esse Deus
intervém na história de uma pessoa. Ainda pode se destacar que em sua fala é
expressa a ideia de que YHWH cuida de Belém; realidade exibida na fala do
narrador no início do livro (Rt 1. 6). O Deus de Israel está atento para as
necessidades das pessoas de forma individual e para as do seu povo.
Ao final
daquele dia de colheita Rute relata para sua sogra como Boaz lhe foi favorável
(Rt 2. 19). Quando Noemi soube de tudo que Boaz fez para ajudar Rute ela salienta:
“Bendito seja ele de YHWH, que ainda não tem deixado a sua benevolência nem
para com os vivos nem para com os mortos.” (Rt 2. 20 ARA). A fala de Noemi
revela que ela entendia que YHWH estava por trás dos atos de bondade de Boaz,
isto é, ele foi usado por YHWH para favorecer elas.
Terminada
a colheita da cevada e do trigo Noemi instrui Rute a ir até Boaz e deitar-se aos
seus pés para que ele as resgate (Rt 3. 1 – 5). Rute seguiu as instruções de
Noemi e se deitou aos pés de Boaz na eira. Neste contexto Boaz e Rute tem uma
conversa na qual ele se alegra pela escolha de Rute; ela poderia ter buscado um
homem mais jovem para lhe resgatar, mas não foi o caso. Boaz interpreta esse
fato como um gesto de bondade por parte de Rute (3. 6 – 11). Ele declara:
“Bendita sejas tu de YHWH” (3. 10). Na sequência o narrador conta sobre o
resgate de Noemi e Rute por parte de Boaz (4. 1 – 12). Os homens da cidade após
presenciarem o resgate e sabendo que Rute iria se casar com Boaz desejam a ele
que YHWH abençoe o lar dele por meio de Rute (4. 11 – 12). Percebe – se nesta
narrativa que os personagens não só acreditavam que Rute foi abençoada por YHWH
por meio de Boaz, mas que ele também seria abençoado por YHWH por meio dela.
Rute e
Boaz se casam e ela fica gravida. O fruto do ventre de Rute é apresentado como
benção de YHWH para eles e para Noemi que a partir de então teria um resgatador
(Rt 4. 4. 13 – 16). Cundall, A. e Morris, L. destacaram (1968, p. 302):
Observe que
o filho que nasceu é considerado um presente de Deus. Ao longo deste livro,
existe o pensamento consistente de que Deus está acima de tudo e realiza sua
vontade. Acabamos de ver que os anciãos e outros consideravam as crianças como
um presente de Deus (4.12) e agora vemos o mesmo pensamento do autor.
Os
personagens do livro de Rute apresentam a crença de que YHWH estava cuidando
deles e lhes abençoando. YHWH pode abençoar ou não e isso pode se dar
diretamente por sua mão ou por meio de outras pessoas que temem a Ele. YHWH é
soberano e mantenedor daqueles que o temem. Nas palavras de William S. Lasor (2002,
p. 573): “Em suma, o livro ensina “plena causalidade” de Deus – uma direção
contínua e soberana de tudo.”
3. 2 O Go’el
O resgate de Rute e Noemi é um tema singular. O narrador introduz a
segunda parte do livro com um anúncio de enredo: “Tinha Noemi um parente
de seu marido, senhor de muitos bens, da família de Elimeleque, o qual se
chamava Boaz” (Rt 2. 1). O escritor da inicia a segunda parte do livro de tal
forma para criar expectativa no leitor. Os leitores antigos ao lerem tal
declaração podiam vislumbrar o futuro resgate e de fato ele acontece. No mundo
antigo o papel do parente resgatador era ajudar a recuperar as propriedades da família;
se uma pessoa precisasse vender uma propriedade para pagar uma divida o Go’el deveria resgatar para manter a propriedade
na família e isso também servia como um sinal de que a pessoa era parte da
comunidade da aliança. No caso de Noemi há um agravante, pois, não se tratava
apenas do resgate da terra, mas também de Rute, a Moabita. Uma vez que o Go’el
regatasse a terra, também resgataria Rute e o filho dessa relação seria filho do
falecido e teria direito a terra da família que foi resgatada. Assim o resgate
da terra implica em uma generosidade singular por parte do Go’el (VAUX, 2003, pp. 143 – 145; WALTON et al., 2018, p. 362 – 363;
WALTON, 2009, p. 261).
O hebraísta Luís Alonso Schökel (1997, p. 125) em seu dicionário de
hebraico faz a seguinte observação sobre o termo Go’el: “Resgatar. Em
sentido próprio significa a ação legal pela qual um responsável, perante, ou
substituto, recupera bens alienados, livra escravos ou cativos, vinga
assassínios, recupera bens consagrados, casa – se com uma viúva sem filhos.”. O
uso desta palavra no tronco qal no hebraico é de cunho legal e assim ao que
tudo indica nossa palavra foi tomada de um contexto legal e de tal forma é
usada na Torá. A palavra está relacionada ao resgate de uma propriedade (Lv
25.47 – 49); ou de uma pessoa que se vende como escravo (Lv 25. 48 – 49); ainda
é usado para o resgate de Rute (Rt 3.12; 4.4, 9, 10)[3]
(WESTERMANN et al., 1997, p. 401; HUBBARD, 2011, p. 769).
Um uso recorrente de Go'el na Bíblia Hebraica é o teológico. Em
diversos texto YHWH é o redentor de Israel (Is 41. 14; 43. 1, 14; 44. 6, 22).
YHWH foi considerado pelos escritores Bíblico como o Go'el de Israel.
O texto do livro de Rute exegeticamente e teologicamente não se refere a
uma redenção como vista nas páginas do Novo Testamento, porém é inegável a
ideia de uma redenção para além das fronteiras do Israel étnico e que é vista
de forma clara nas páginas do Novo Testamento (MERRILL, 2009, p. 413; MCGEE,
1991, p. 88).
3.
3 Resgate para os Gentios
O livro de
Rute exibe a realidade de que YHWH não queria salvar apenas Israel. YHWH salva
os descendentes de Abraão como também os gentios que entram em relacionamento
com Ele. Rute é chamada de Moabita no livro que leva seu nome sete vezes (1.
22; 2. 2, 6, 21; 4. 5, 4. 10). O autor parece querer chamar a atenção do leitor
para o fato de Rute ser uma Moabita e tal ideia parece ser reforçada pelo fato
de a palavra “Mo’aviyyah, Moabita” aparecer dezesseis vezes na Bíblia
Hebraica, ou seja, praticamente a metade das ocasiões em que a palavra aparece
então concentradas no livro de Rute (Dt 2. 11, 29; 23. 4; 1 Re 11.1; Ed 9. 1;
Ne 13. 1, 23; 1 Cr 11. 46; 2 Cr 24. 26).
A primeira
fala de Rute na narrativa merece atenção neste momento. As falas dos
personagens Bíblicos revelam quem eles são. A declaração inicial “teu povo é o
meu povo e teu Deus é o meu Deus” (Rt 1. 16) revela quem é Rute e qual será seu
relacionamento com YHWH. Hubbard (2003, pp. 166 –167) ao comentar sobre a fala
de Rute bem salientou:
Ela
renunciou suas raízes étnicas e religiosas e adotou a nacionalidade e a
religião de Noemi. Dali em diante, seus parentes seriam israelitas; seu deus,
Yahweh. Como isso surpreende em vista da acusação amarga que Noemi fez de seu
Deus, no v.13! E mais, como é sem paralelos essa afirmação na Bíblia. Enquanto
que algumas pessoas estrangeiras louvaram o Deus de Israel (a rainha de Sabá,
1Rs 10.9; Nabucodonozor, Dn 2.47; 3.28,29; 4.34 [port. 37]; Dario, Dn 6.27,28)
ou buscaram sua misericórdia (o rei da Assíria, Jn 3.7–9) só duas realmente
confessaram lealdade a ele (Raabe, Js 2.11; Naamã, 2Rs 5.15; cf. v.17). Em todo
caso, não se deve minimizar o sacrifício e dor envolvidos. Qualquer que tenha
sido a motivação dela ou seu conhecimento de Yahweh, ela voluntariamente
abandonou a família, o ambiente e arredores conhecidos e suas tradições
religiosas. Ela assumiu o futuro incerto de uma viúva amargurada numa terra
onde não conhecia ninguém, gozava de poucos direitos legais, e – dada a
tradicional rivalidade moabita-israelita – enfrentava possível preconceito
étnico (para detalhes, ver o comentário em 2.2).
A realidade de que Rute abandonou os deuses de sua terra e decidiu
servir ao Deus de Israel é evidente. Naomi se esforça para que Rute voltasse a
seus próprios deuses. Não era incomum as mulheres que se casarem com famílias
estrangeiras buscarem a proteção contínua de suas deidades nativas (Gn 31.19; 1
Rs11. 8; 16. 31) (WALTON et
al., 2018, p. 360;
FLEENOR et al., 2008, p. 338; KEIL et al., 1996, pp. 346 – 347). No
diálogo de Boaz com Rute é confirmada essa ideia quando ele destaca que ao ir
para Belém ela estava buscando refúgio no Deus de Israel. Ao falar da confissão de Rute é dito de forma
inusitada no Talmud[4]:
Naomi disse
a ela: Somos ordenados a observar seiscentos e treze mandamentos. Rute
respondeu: “O seu povo é o meu povo” (Rt 1.16). Noemi lhe disse: A adoração
idólatra é proibida para nós. Rute respondeu: "Seu Deus é meu Deus"
(Rt 1.16). Naomi disse-lhe: Quatro tipos de pena de morte foram entregues a um
tribunal com o qual punir aqueles que transgrediram os mandamentos. Rute respondeu:
"Onde você morrer, eu morrerei" (Rt 1.17). Naomi disse a ela: Dois
cemitérios foram entregues ao tribunal, um para os executados por crimes mais
graves e outro para os executados por crimes menos graves. Rute respondeu:
"E ali serei enterrado" (Rt 1.17). Yevamot 47b
Bruce Waltke (2015, p. 965) acertadamente observou que “a clássica
confissão de fé em Eu Sou (1.16) e seu compromisso com Israel apresentam-na
como uma viúva desamparada que [...] toma decisões com base num compromisso
deliberado com Eu Sou (1.20,21).” A decisão dessa gentia foi acertada de tal
forma que ela entrou para a genealogia do rei Davi e para a do Messias de
Israel (4. 18 – 22; Mt 1. 1 – 17).
Eugene Merrill (2009, pp. 412 – 413) bem salientou que a genealogia ao
final do livro demonstra como uma gentia, Rute, a semelhança de Raabe pode
fazer parte da aliança entre YHWH e seu povo. Merrill ainda destaca que a “ligação
entre Abraão (ou Perez aqui, filho de Judá) [5]e
Davi, são as alianças que eles, respectivamente, representam que têm mais
relevância teológica.”.[6] Assim
parece razoável sugerir que a entrada de Rute na aliança de YHWH com seu povo exibe
a realidade de que Ele não pretendia salvar somente o Israelita, porém também o
não israelita.
4 INTERTEXTUALIDADE
Há uma
tensão entre os Moabitas e os filhos de Israel desde o surgimento de ambas as
nações. YHWH prometeu para Abraão que dele faria uma grande nação e fez (Gn 12.
1 – 3; 15. 1 – 11; Dt 1. 9 – 11). O nascimento da descendência de Abraão foi
miraculoso desde o início, Sara esposa de Abraão não poderia ter filhos e YHWH
lhe abre o ventre (Gn 11. 30; 18. 1 – 15). O contexto da promessa de que Sara ficaria
gravida é contraposto ao nascimento de Moabe (Gn 18 – 19).
Jacques
Doukhan (2016, p. 242) destaca uma relação literária em Gênesis 18 e 19 que
merece atenção. Esse vínculo exibe uma dessemelhança desde a origem entre a
descendência de Abraão e a de Ló.
A Visita dos
anjos a Abraão (18: 1-8)
B Nascimento sobrenatural de um filho
para Sara e Abraão (18: 9-15)
C O encontro de Abraão com o
Senhor (18: 16-33)
A’ A visita dos
anjos a Ló (19: 1 -29)
B’ nascimento incestuoso dos filhos
das filhas de Ló com Ló (19: 30-38)
O contraste
está organizado da seguinte forma: 1) A visita hospitaleira dos anjos a Abraão
(18. 1-8) contrasta com a visita inóspita dos anjos a Ló (19: 30-38) e 2) o
nascimento sobrenatural de um descendente para Abraão (18. 9-15) contrasta com
os nascimentos incestuosos dos filhos de Ló com suas filhas (19. 30-38). Os
descendentes de Ló são Moabe e Amom.
As relações
entre Israel e Moabe ao decorrer da história foram de tensão. Quando o povo de
Israel saiu do Egito eles contrataram Balão para amaldiçoar os filhos de Israel;
Balão não foi bem sucedido, então eles mandam mulheres Moabitas para corromper
os filhos de Israel. Por conta dessa atitude YHWH determinou que nenhum Moabita
deveria se assentar na assembleia dEle por dez gerações (Dt 23. 1 – 6). Carl
Friedrich Keil e Franz Delitzsch (1996, p. 344) argumentam que o casamento com as
filhas dos Moabitas não era proibido na lei, como os casamentos com mulheres
cananeias (Dt 7. 3); foi apenas a recepção dos Moabitas na congregação de YHWH
que foi proibida (Dt 23. 4). Os antigos rabinos interpretaram da mesma forma (Chullin
62b:7; Gittin 85a:9; Horayot 10b:13; Kiddushin 67b:6; Yevamot 77a:4).
Roy Zuck (2009, pp. 129 – 130)
argumenta que a interpretação de que a proibição só referia ao sexo masculino é
aceitável, porém parece mais razoável que os Moabitas que foram proibidos de
entrar na assembleia de YHWH era os descrentes. Segundo ele aqueles que
manifestassem uma fé semelhante a de Abraão seriam aceitos uma vez que esse era
o requisito para se fazer parte da aliança. Seja como for, o fato de que Rute
se tornou parte da aliança entre YHWH e Israel permanece.
A narrativa da
família de Elimeleque parece ser uma quebra nessa tensão. O livro começa de
forma bastante irônica dizendo que faltou alimento em Belém e uma família de
Israelitas vai até Moabe em busca de comida, o lugar menos indicado para tal
empreitada (Rt 1. 1). Eles ficam lá durante um tempo e só voltam quando passa a
ter pão em Belém que é a “casa do pão” (1. 6).
Mais tarde
Rute, a Moabita, vai se aproximar de Boaz, o Israelita. Mas ao contrário do que
aconteceu em Beor, de Petor, quando as Moabitas tiveram relações sexuais
ilícitas com os israelitas para lhes fazem pecar contra YHWH ela se porta de
forma digna (Nm 25. 1 – 18; Rt 3. 1 – 18). Boaz e Rute se casam e ela passa a
fazer parte da genealogia do Messias de Israel (4. 18 – 22; Mt 1. 1 – 17).
5.
APLICAÇÃO
O livro de Rute apresenta a ideia teológica de que Deus é o gestor da
história e que mesmo em situações desafiadoras pode tirar o melhor. YHWH usa
pessoas para auxiliar de formas diferentes aqueles que Ele quer salvar. Neste
sentido aqueles que servem ao Deus de Israel devem estar atentos para as
necessidades alheias pois são um veiculo de benção na vida de pessoas desoladas
pelas adversidades de um mundo de pecado.
Há no livro a indicação clara de que YHWH não é exclusivista e seu plano
de salvação inclui o israelita e o gentio. Essa verdade é vista nas páginas da
Bíblia Hebraica quando com Israel sai um misto de gente do Egito (Êx 12. 38),
no discurso de Moisés quando é salientado que a aliança também envolvia os
estrangeiros (Dt 29. 1 – 16), na inclusão de Raabe na linhagem do Messias.
Outros exemplos poderiam ser citados, porém esses são suficientes para
demonstrar que o plano de YHWH não envolvia apenas os israelitas. A narrativa
de Rute neste sentido se soma a um corpo literário mais amplo que também
apresenta essa verdade. O Deus de Israel prove os meios para o resgate e não o
homem.
6. CONCLUSÃO
A teologia encontrada nos diálogos do livro de Rute nos permite concluir
que Deus é Soberano e Mantenedor. YHWH está por de trás dos acontecimentos
históricos; seja permitindo algo ou causando algo. Ele prove os meios para suprir
as necessidades dos seus filhos seja abençoando a colheita ou provendo um
casamento e um neto.
O resgatador provido pelo Deus de Israel resgata o israelita e o gentio,
Noemi e Rute. Essas duas mulheres são um exemplo de como YHWH envolve todos no
seu plano de resgate. Plano que atinge seu clímax no Novo Testamento com Jesus
se entregando por judeus e gentios.
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[1] Para um estudo detalhado sobre a
autoria e datação do livro de Rute ver. Cooke, G. A. (1918); Bush, F.W. (2002).
[2] Para um estudo detalhado sobre a
importância dos diálogos ver. (ALTER, 2007, pp. 102 – 136).
[3] Por motivos de espaço não será
oferecida uma discussão sobre esses significados. Para mais detalhes ver.
(HUBBARD, 2011, p. 765 – 769; BRIGGS, 1977, p. 145).
[4] Todas as citações do Talmud
Babilônico seguem a numeração de Neusner (2011).
[5] Na tradição judaica a genealogia
de Perez é diretamente ligada ao Messias: “R. Berekiah disse em nome de R.
Samuel B. Nahman: Pensei que essas coisas foram criadas em sua plenitude;
contudo, quando Adão pecou, elas foram estragadas, e elas não voltarão à
perfeição novamente até que o filho de Perez [Messias] vem [...]” Midrash
Rabbah, Gênesis XII, 6. Ver. (HUCKEL,
1998).
[6] Ver também Roy Zuck (2009, pp. 127
– 128).